O
grande debate entre capitalismo e socialismo sofre de uma enorme falta de
clareza a respeito de suas respectivas definições. É por isso que, quando Walter Block palestrou
no Brasil há uns 8 dias, ele teve o enorme cuidado de fazer uma distinção entre
capitalismo genuíno e capitalismo corporativo, ou, como dizem, capitalismo de
compadres. E é por isso que, quando fui
entrevistado pela equipe do Instituto Mises Brasil, a pergunta surgiu imediatamente:
o que exatamente você entende por capitalismo?
Diariamente,
por exemplo, lemos sobre como a bagunça econômica na Europa representa uma
"crise do capitalismo". Oi? Já faz mais de cem anos que os governos
europeus não mais deixam suas economias crescerem por conta própria, sem
coagi-las com regulamentações, sem tributar espoliativamente o público, sem
inundar o sistema financeiro com dinheiro falso criado do nada, sem cartelizar
o sistema produtivo, beneficiando os amigos do regime, sem criar inúmeros
benefícios assistencialistas, sem financiar colossais programas de obras
públicas e por aí vai.
Alguns
defensores da liberdade de mercado acreditam que o termo "capitalismo" deveria
ser descartado permanentemente porque gera confusão. As pessoas podem pensar que você preconiza o
uso do estado para defender o capital contra o trabalho, o uso de políticas
públicas para defender importantes empresários contra os consumidores ou a
imposição de prioridades políticas que favoreçam os negócios à custa do trabalho.
Se
um termo explica uma ideia com grande acurácia, ótimo. Mas se ele causa confusão, então tem de ser
alterado. A linguagem é algo que está em
constante evolução. Nenhum arranjo
específico de letras pode embutir em si um significado imutável. E o que está em jogo neste debate sobre a
liberdade de mercado (ou o capitalismo ou o laissez-faire ou o livre mercado) é
um conteúdo de profunda importância.
É
com o conteúdo, e não com as palavras, que devemos nos importar. Não é exagero algum dizer que o futuro da
civilização, o qual está cada vez mais periclitante, depende disso.
A
seguir, cinco elementos essenciais a esta ideia de liberdade de mercado, ou
seja lá como você queira chamar este arranjo.
Trata-se de meu breve resumo sobre a visão liberal clássica a respeito
da sociedade livre e de seu funcionamento, visão esta que não se resume apenas
à economia, mas sim a tudo de que depende nossa vida.
Vontade
Mercados
se resumem ao exercício da escolha humana em todos os níveis da sociedade. Tais escolhas se estendem a todos os setores
e a todos os indivíduos. Você pode
escolher o seu trabalho. Ninguém pode
obrigar você a ter um emprego que você não queira, mas você também não pode obrigar
nenhum empregador a lhe contratar. Da
mesma forma, ninguém pode obrigar você a comprar nada, mas você também não pode
obrigar ninguém a vender algo para você.
Este
direito à liberdade de escolha reconhece a infinita diversidade que existe
dentro de todo o conjunto de indivíduos que forma uma sociedade (ao passo que
políticas governamentais têm necessariamente de supor que as pessoas nada mais
são do que meras unidades perfeitamente permutáveis). Algumas pessoas sentem uma vocação para viver
uma vida de oração e contemplação em uma comunidade de religiosos
fervorosos. Outras possuem um talento
para gerenciar ativos em fundos de alto risco.
Já outras preferem as artes, ou a contabilidade, ou qualquer outra
profissão ou vocação que você puder imaginar.
Qualquer que seja sua vocação, você pode segui-la livremente, desde que
o faça de maneira pacífica, sem iniciar violência ou coerção contra terceiros.
Você
tem liberdade de escolha; porém, em suas relações com terceiros, "acordo" ou
"concordância" é a palavra-chave. Isto
implica a máxima liberdade para todos os indivíduos na sociedade. Também implica um papel máximo para aquilo
que chamam de "liberdades civis". Implica
ter liberdade de expressão, liberdade de consumo, liberdade de comprar e
vender, liberdade publicitária e assim por diante. Nenhum arranjo de escolhas possui privilégios
legais sobre outros.
Propriedade
Caso
houvesse uma infinita abundância de recursos no mundo, não haveria necessidade
de propriedade sobre os recursos. Porém,
considerando a realidade do mundo em que vivemos, sempre haverá potenciais
conflitos sobre recursos escassos. Estes
conflitos podem ser resolvidos por meio de uma simples e brutal guerra por
estes recursos, ou pelo reconhecimento de direitos de propriedade. Se quisermos paz em vez de guerra, vontades e
escolhas em vez de violência, produtividade em vez de pobreza, todos os
recursos escassos — sem exceção — terão de ser propriedade privada.
Todos
os indivíduos podem utilizar sua propriedade de qualquer maneira que seja
pacífica. Não há limites para a
acumulação nem a necessidade de permissão para acumulações. A sociedade não pode declarar que alguém já
está excessivamente rico (e que, logo, parte de sua riqueza deve ser
confiscada) e nem proibir o asceticismo ao declarar que alguém é excessivamente
pobre (e que, logo, terceiros devem ser roubados para que se possa enriquecer o
pobre). Em situação alguma pode alguém
pegar o que é seu sem sua permissão.
Você tem plena liberdade de estipular como será a distribuição de sua
propriedade para seus herdeiros após você morrer, sem que ninguém confisque uma
fatia desta sua propriedade.
O
socialismo realmente não é uma opção para o mundo material. Não é possível haver propriedade coletiva de
qualquer coisa que seja materialmente escassa.
Alguma facção sempre acabará exercendo o controle dos recursos em nome
da sociedade. Inevitavelmente, esta
facção será a mais poderosa da sociedade — ou seja, o estado. É por isso que todas as tentativas de se criar
socialismo sobre bens ou serviços escassos sempre degenera em sistemas
totalitários.
Cooperação
Vontade
e propriedade garantem a qualquer indivíduo o direito de viver em um
estado de
total isolamento, em um estado de pura autarquia. Por outro lado, tal
arranjo não levará
ninguém muito longe. O indivíduo que
assim deseja viver será pobre e sua vida, muito curta. Indivíduos
necessitam de outros indivíduos
para poder viver uma vida melhor. Nós
incorremos em atividades comerciais para melhorarmos mutuamente nossa
situação. Cooperamos por meio do trabalho. Criamos e desenvolvemos
todas as formas de
associação mútua: comercial, familiar e religiosa. A vida de cada um de
nós é aprimorada pela
nossa capacidade de cooperar, de alguma forma, com outras pessoas.
Em
uma sociedade baseada em vontades e desejos, em propriedade e cooperação, redes
de associações humanas se desenvolvem ao longo do tempo e do espaço para criar
as complexidades da ordem social e econômica.
Ninguém é o senhor da vida de ninguém.
Se quisermos ser bem sucedidos em nossas vidas, temos de aprender a bem
servir outros indivíduos — nossos clientes — da melhor maneira possível. Empresas e empreendedores servem a seus
consumidores. Gerentes servem a seus
empregados assim como os empregados servem à sua empresa.
Uma
sociedade livre é uma sociedade de relações humanas extensivas. É uma sociedade de amizade ampliada para todos
os setores. É uma sociedade de prestação
de serviço, de benevolência e de cuidado para com a qualidade dos serviços
ofertados para todos os indivíduos.
Aprendizado
Ninguém
nasce sabendo muito a respeito de qualquer coisa. Aprendemos com nossos pais e professores,
mas, ainda mais importante, aprendemos com os infinitos pedaços de informações
que chegam a nós a cada instante do dia ao longo de todas as nossas vidas. Observamos o sucesso e o fracasso de terceiros,
e aprendemos com eles. Acima de tudo,
somos livres para aceitar ou rejeitar estas lições. Isso vai de cada um. Em uma sociedade livre, temos a liberdade de
emular os outros, acumular sabedoria e colocá-la em prática, ler e absorver
ideias, extrair informações de toda e qualquer fonte, e adaptá-las ao uso que
mais nos aprouver.
Todas
as informações com as quais nos deparamos ao longo de nossas vidas são bens
gratuitos e não-escassos, desde que obtidas não-coercivamente. Elas não estão sujeitas às limitações da
escassez porque são infinitamente copiáveis.
Você, eu e todas as outras pessoas da sociedade podemos ter uma mesma
informação e ainda assim ela não será escassa.
A informação é algo que pode ser propriedade coletiva, sem limitações.
E
é justamente neste ponto que encontramos o lado "socialista" do sistema
capitalista. As receitas para o sucesso
e para o fracasso estão disponíveis em todos os cantos, e plenamente livres
para serem estudadas e utilizadas — ou descartadas. É por isso que a própria noção de
"propriedade intelectual" é hostil à liberdade: ele sempre implica a coerção de
pessoas e, consequentemente, a violação dos princípios da vontade, da autêntica
propriedade e da cooperação.
Concorrência
Quando
as pessoas pensam em capitalismo, provavelmente 'concorrência' é a primeira
ideia que vem à mente. Porém, tal ideia
é amplamente mal compreendida e interpretada.
Concorrência não significa a necessidade da existência de vários
ofertantes de todos os tipos específicos de bens e serviços, ou a necessidade
da existência de um determinado número de produtores de qualquer coisa. Concorrência significa apenas a não
existência de limites legais (coercivos) à entrada no mercado, o que significa
que, falando mais diretamente, não deve haver restrições à maneira como podemos
servir uns aos outros. E, realmente, há
infinitas maneiras nas quais isto pode ocorrer.
Nos
esportes, a competição possui um único objetivo: vencer. Na economia de mercado, a competição também
possui um objetivo: atender ao consumidor com um grau de excelência
continuamente crescente. Esta excelência
pode vir na forma de uma oferta de produtos ou serviços mais baratos e de
melhor qualidade, ou na forma de novas inovações que atendam às necessidades das
pessoas de forma mais eficiente e barata do que os produtos e serviços já existentes. Competição não significa "aniquilar" os
concorrentes; significa se esforçar para fazer um serviço melhor do que todos
os seus concorrentes.
Qualquer
ato competitivo é um risco, um salto rumo a um futuro desconhecido. Se o julgamento foi certo ou errado, isto é
algo que será ratificado pelo sistema de lucros e prejuízos. Lucros e prejuízos são sinais enviados pelo
mercado que servem como mensurações objetivas: eles mostram se os recursos estão
sendo utilizados corretamente ou não.
Estes sinais são derivados dos preços cobrados pelos empreendedores e
pelos custos nos quais eles incorrem para produzir, e são estabelecidos
livremente no mercado — o que significa dizer que os preços atuais são um mero
reflexo de todos os acordos prévios que foram feitos entre indivíduos com
liberdade de escolha.
Ao
contrário dos esportes, não há um ponto de chegada para a competição do
mercado. Trata-se de um processo que
nunca acaba. Não há um vencedor final;
há um contínuo e ininterrupto rodízio de excelência entre os competidores. E qualquer um pode entrar no jogo, desde que
participem dele pacificamente.
Resumo
Aí
está, portanto: vontade, propriedade, cooperação, aprendizado e
concorrência. Eis aí, a meu ver, a
essência do capitalismo, exatamente como ele foi descrito pela tradição
liberal-clássica, a qual foi aprimorada pelos teóricos sociais austríacos do
século XX. Não se trata exatamente de um
sistema, mas sim de um arranjo social — para todas as épocas e lugares — que
favorece o desenvolvimento humano.
Não
é difícil, portanto, especificar a visão política de genuínos liberais: se algo
se encaixa nestes requisitos, somos a favor; se não, somos contra. Donde vem a pergunta: a atual crise mundial é
realmente uma crise do capitalismo? Ao
contrário, um autêntico capitalismo é a solução para os maiores problemas do
mundo atual.
Por Jeffrey Tucker
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